IGREJA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE VIÇOSA DO CEARÁ

A Serra de Ibiapaba, nome de origem tupi, é uma imensa cordilheira vulgarmente conhecida por “Serra Grande”, “Chapada de Ibiapaba” e “Cuesta de Ibiapaba”, que se prolonga ao norte da província e a extrema com o Piauí. Foi na Ibiapaba[1] ao raiar do século XVII, em 1603, quando Pero Coelho de Sousa, primeiro explorador do Ceará chega à Serra de Ibiapaba, na marcha para expulsar os franceses que já andavam pelo Maranhão, onde encontra o gentio entrincheirado e ajudado de arcabuzeiros franceses de um tal Bombille, Mambille ou, melhor, Montbil. Nessa marcha, sustentou uma luta com os índios, tendo os principais Juripariguassu (Diabo Grande) e Irapuan (Mel Redondo), auxiliados por franceses, mulatos e crioulos da Bahia. O Diabo Grande foi o braço direito dos padres jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueira que tomaram contato com os Tabajaras, que os apelidaram Abaúnas, homens pretos. Era ali a Ararena, a Grande Taba a que se refere Cláudio de Abbeville.

“A ação lusitana, ainda isolada, tinha como objetivo eliminar a presença francesa em uma zona hoje correspondente a terras espalhadas entre o Ceará e o Maranhão, fato que motivou, na Paraíba, o preparo de uma expedição de resgate comandada pelo açoriano Pero Coelho de Sousa. Infelizmente, conquanto tenha conseguido rechaçar os franceses para além da atual divisa do Ceará com o Piauí, na serra da Ibiapaba, essa primeira tentativa de ocupação do solo da capitania (1603) redundou em desfecho malogrado e trágico. Pouco depois, em 1608, movidos pelo manifesto afã de catequizar os índios e talvez também por outras razões são perfeitamente esclarecidas, dois jesuítas do Colégio da Bahia de certo modo repetem o mesmo trajeto de Coelho. Em missão de paz, fundou uma aldeia no alto da Ibiapaba, visando a atrair o gentio ligado aos franceses. Um dos missionários, o padre Francisco Pinto (1553-1608), açoriano da Angra do Heroísmo (Ilha Terceira), é inesperadamente morto pelos índios tocariús. O outro religioso, o padre Luís Figueira (1574-1643), defendido por indígenas amigos (potiguares), consegue entretanto retornar à Bahia. As atribuições dos jesuítas foram narradas pelo Padre Figueira, na Relação do Maranhão, o mais antigo documento da história do Ceará” (CASTRO, 2001, p. 17).

[1]“A região da Ibiapaba é vista no século XVII pelos colonizadores e missionários jesuítas como território de passagem de terras de Pernambuco para as de Maranhão, sob tomentosas batalhas e ameaça francesa. A morte do padre Pinto ficaria como símbolo de obstáculos quase intransponíveis à penetração pelo norte. Passados quase sessenta anos daquele episódio, o próprio Vieira foi designado para realizar uma nova missão” (CAVALCANTE, 2014, p. 47).

O padre Antônio Vieira escrevia estas notícias no ano de 1660 e pelo tom que escreve bem se vê que estava na plenitude e cume do seu poder, contente e satisfeito, a mais não poder ser, de si e das suas obras. Não menos vaidosamente companheira estes sucessos com os do reino, e os seus serviços com os dos grandes capitães e navegadores portugueses. O remate de todas as suas cartas eram sempre novas lástimas sobre a sorte dos pobres índios, e as perseguições que por amor deles sofriam os padres, e daí tomava ocasião para pedir novo reforço de missionários que os viessem ajudarem, porque a messe era abundante, e os operários eram poucos.

“O interesse dos jesuítas pela Ibiapaba, pelo menos inicialmente, procedia de dois fatos. Primeiro, o devotamento da Companhia de Jesus à cristianização de infiéis ou pagãos, onde quer que se achassem. No caso da serra, contava-se com mais um dado, qual fosse a presença numerosa de índios que haviam sido protestantizados pelos holandeses em Pernambuco e adjacências. Temerosos de represálias após a restauração da Coroa portuguesa em 1640, esses índios tinham fugido da costa leste nordestina, buscando esconderijo naquelas paragens distantes, o que explica a expressão de Vieira[1] ao qualificar a Serra da Ibiapaba como uma verdadeira “Genebra dos sertões no Brasil”, numa clara referência à terra de adoção de Calvino. O segundo fato se traduzia na tentativa, senão de pacificar, mas, pelo menos, de amenizar os problemas ocorridos em trechos litorâneos perto da serra (e na própria serra), permanentemente assolados por índios belicosos, cuja ação embargava o eventual trânsito lusitano ligado à aquisição do âmbar.” (CASTRO, 2001, p. 19-20)

[1]“O próprio padre Antônio Vieira se aventurou por terra, passando pelos Lençois Maranhenses e atravessando os braços do delta do Rio Paraguaçu (hoje, Parnaíba), visitar a Missão da Serra, de cuja viagem deixou-nos uma elegante e pormenorizada descrição (VIEIRA, relação da Missão da Serra de Ibiapaba, in sermões, vol. XII, p. 365-401; Edelbra Industria Gráfica Ltda. Erechim, RS, 1998).

Foi na Ibiapaba, que chegava a pé, por terra, quase 300 léguas, vindo de Pernambuco, onde chegara andrajoso, o Padre Ascenso Gago[1], fundador da Missão de Ibiapaba.

 “As ameaças da Casa da Torre, se prejudicaram as missões do interior, não atingiram a Serra. E fundou-se, enfim, a Aldeia de Ibiapaba. A qual “em forma”, como diz Ascenso Gago[2] no sítio definitivo em que hoje é a Cidade de Viçosa, data de 1700. […] A Aldeia construíra-se em forma de quadra. Concluiu-se a igreja, que já estava principiada antes, “formosa e grande”. Pequena, ainda assim, para tanta gente como ia ter a Aldeia. […] E veio a inauguração da Igreja. Colocou-se nela a imagem da “Soberana Virgem Senhora Nossa da Assunção”. […] Ibiapaba ficou a maior Aldeia da Província, com mais de 4.000 almas. E a população aumentou sempre. A Missão de Ibiapaba continuou a progredir. Reconstruíram-se ou ampliaram-se as casas da Residência. Ampliou-se e embelezou-se a Igreja, e ergueu-se uma torre. Em 1759, deixou de ser Aldeia e passou a se chamar Vila Viçosa Real (LEITE, VOL III, 1943, p. 63-64-65).

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa do Ceará foi construída pelos jesuítas, no último lustro do século XVII. Em carta datada de 25 de julho de 1697, dirigida ao Pe. Ascenso Gago informava: “para o verão seguinte, se Deus nos der mantimentos, se fará a (…) igreja em forma, para a qual se vai tirando madeira necessária”.

“Nova missão na Ibiapaba começou a ser estabelecida em 1691 pelos padres Ascenso Gago e Manuel Pedroso, a qual, com relativa continuidade, permaneceu ativa até 1759, ano em que os jesuítas foram expulsos do Brasil. O Padre Ascenso Gago (São Paulo, 1655 – Salvador, 1717) fixou-se em ponto da serra onde veio a erguer a pequena capela de Nossa Senhora da Assunção, cujas obras edificatórias (consoante carta do próprio padre) foram iniciadas em 1695.” (CASTRO, 2001, p. 21)

Em 1700, ano em que foi fundada a Aldeia da Ibiapaba. Concluiu-se a igreja, que estava principiada antes, formosa e grande. Pequena, ainda assim para tanta gente como ia ter a aldeia. As madeiras da serra, menos compridas do que se requeriam, não permitiam mais grandeza. E a 15 de agosto daquele ano, “veio a inauguração da igreja. Colocou-se nela a imagem da soberana Virgem Senhora Nossa da Assunção. Procissão, missa, prática aos índios e, para maior pompa, o batismo solene de vinte e cinco catecúmenos. A festa religiosa completou-se com regozijo público e popular.

“Em 15 de agosto de 1700, com o mesmo orago da igreja e em torno dela, Gago fundou a Aldeia da Soberana Virgem de Nossa Senhora da Assunção, cujas casas eram “de madeira e barro e cobertas de palha” (S. Leite, 1953 – História, p. 63). Na segunda década do século XVIII, o padre Ascenso Gago deixou a serra, transferindo-se para o Colégio da Bahia, onde veio a falecer. Com 4.000 moradores, a missão espalhada pela serra da Ibiapaba tornara-se uma das maiores entre aquelas que os jesuítas desenvolveram no Brasil.” (CASTRO, 2001, p. 21-22)

[1]“Suponho, aliás, que ninguém mais e melhor do que o bravo e incansável jesuíta Padre Ascenso Gago simboliza e expressa a constância dêsse imenso esforço civilizador e cristão, no altiplano e na caatinga, sempre auxiliado pelos Governos de Pernambuco e do Maranhão, simultaneamente, na forma da determinação real que obteve em 8-1-1697” (BARROSO, 1969, p. 81).

[2]“O padre Gago descreve os primeiros contatos com os Tobajara (senhores do rosto ou rostos limpos), pertencentes ao Grupo Tupi-Guarani, oriundos das bandas do Rio São Francisco, na Bahia, donde teriam saído cerca de duzentos anos atrás, de acordo com o relato dos mais velhos” (COELHO, S.J., 2014, P. 71-72).

“Mal o governo português resolvera extinguir a Companhia de Jesus, o desembargador Bernardo Coelho Gama Casco, cumprindo as ordens reais, já em meados de 1759 deixava Pernambuco a fim de arrolar e tomar posse dos bens dos jesuítas no ceará, ou melhor dito, das aldeias e fazendas dirigidas pelos religiosos, as quais deveriam ser integradas ao patrimônio da Coroa. Gama Casco, viajando por mar, aportou ao Camocim, de onde seguiu diretamente para a IBIAPABA. Como medida preliminar, destituiu o padre Rogério Canísio, dirigente da Missão, o qual, com outros dois irmãos leigos, foi imediatamente transferido para Portugal, onde veio a falecer no cárcere de São Julião, em Lisboa. Era alemão.” (CASTRO, 2001, p. 25)

“Encerrado os trabalhos de tombamento dos bens da Missão, Casco tratou imediatamente de estabelecer uma instituição legal substitutiva da Missão, fundando, em 7 de Julho de 1759, a Vila Viçosa Real d’América, na verdade, uma “vila de índios” entregue ao comando de um diretório leigo. Quanto à assistência religiosa, criou uma vigararia de índios, estes agora postos sob a orientação do clero secular. Em seguida, descendo para o litoral, transformou também em vilas de índios outras aldeias dirigidas pelos jesuítas, todas situadas nas proximidades da atual Cidade da Fortaleza, conferindo-lhes toponímia portuguesa, conforme o pediam as instruções reais vigentes[1]. Instalou, portanto, as Vilas de Soure (Caucaia), em 15.10.1759, de Arronches (Parangaba), em 25.10.1759 e de Messejana (Paupina), em 1.1.1760[2].”(CASTRO, 2001, p. 26)

[1]“A atual denominação Viçosa do Ceará decorre de imposição federal de meados do século XX, que não permitiu houvesse localidades brasileiras com os mesmos topônimo, a fim de evitar problemas postais… A decisão admitia certas prioridades, mas como Viçosa mineira se apressou em registrar seu topônimo, a Viçosa cearense, embora muito mais antiga, teve de arcar com o acréscimo…” (CASTRO, 2001, p. 25).

[2]“Exceto Soure, topônimo português de vila localizada na Beira litoral, as demais denominações se referiam a vilas do Alentejo. A Vila Viçosa cearense era chamada “d’América” para diferenciá-la da sua homônima lusitana. A propósito, não se deve esquecer que a multissecular casa dos Braganças mantinha palácio nos chãos ducais da Vila Viçosa alentejana, ainda mais nobilitada após a ascensão de Dom João IV ao trono em 1640.”(CASTRO, 2001, p. 27).

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa do Ceará é parte remanescente da antiga missão jesuítica da Ibiapaba. Acha-se inscrita no Livro Tombo artístico, conforme decisão do Conselho Consultivo. Atualmente Patrimônio Cultural, assumida em reunião de 16 de Maio de 2002, quando foi aprovado o parecer oferecido pelo relator do processo Iphan/DID n.° 1453-T-99, o arquiteto professor Dr. Augusto Carlos da Silva Telles. A Igreja da Assunção, com bens móveis nela integrados, recebeu, portanto, o título de Monumento Arquitetônico Nacional Brasileiro.

No ano de 1710 foram doadas para a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa, ainda sob a direção do fundador da Missão da Ibiapaba, o padre jesuíta Ascenso Gago, as imagens de São José, Santo Antônio e Nossa Senhora da Assunção, além da fazenda Tiaia, por um fazendeiro conhecido por Francisco da Cunha, morador em Pacoti, na comarca do Piauí, bispado do Maranhão.

“A Egreja da aldea da Ibiapaba estava fundada em uma planície no alto da serra e com 40 palmos de intervallo seguia-se-lhe a habitação dos missionários. Tinha de comprido do arco cruzeiro á porta principal 110 palmos de vão e de largo 45 palmos. A capella mor tinha 41 palmos de comprido e 31 de largo e a tribuna 10 palmos de comprido de forma que era quadrado o corpo da capella mór da face da tribuna para baixo. Para se poder ir ao thorno era preciso passar pelas portas que havia nas duas sachristias de um e outro lado em paralello com a capella mor. Tinha o altar principal 13 palmos de comprido, e subia-se a elle por 5 degraus de madeira. Ornavam-no as imagens de Santo Antonio, S. José, S. Franc.co Xavier e Santo Ignacio de Loyola. Nos altares laterais viam-se Santa Anna e Na. Sra. de uma perfeição e o archanjo S. Miguel. O coro estendia se por toda a largura da igreja sobre 17 palmos de comprimento e tinha das janellas botando para a rua. As duas sacristias tinham o comprimento da capella-mor e de largura cada uma 20 palmos ambas com janellas para a cerca dos Rev. Padres. Ao lado ficavam o presbiterio com suas paredes de pedra de alvenaria e um pequeno cemiterio com 78 palmos de comprido e 45 de largo ostentando na extremidade uma elegante cruz de páo. Ao lado da Igreja estendiam-se com 3 carreiras as casas ou antes as cabanas cobertas e feitas de palha, que compunham a aldeia, cujos habitantes eram tabajaras, anacés, carius e coasus ou camassus. Estes mui desprezados das outras tribus e constantemente a revoltarem-se contra os tabajaras que os traziam dominados. Não havia m. os Padres tinham construido ahi o seu hospicio. É facto que para a erecção dele haviam sido expedidas ordens desde os tempos de El-Rei D. pedro, mas só tiveram ellas execução decorridos muitos annos.” (STUDART. G. 1892, op. cit. p. 215-216).

 Segundo o professor José Liberal de Castro “os painéis da Igreja Matriz constituem de certo modo, se não a única, mas sem dúvida a mais importante realização da arte barroca no Ceará, tratando-se de obra de inquestionável significação no acervo artístico nacional”.

1. Esperança – Figura de mulher de pé sobre uma concha, na qual não parece entretanto apoiar-se,j pois esboça apenas um gesto suave, como que tentando equilibrar-se. Segura com a mão direita uma corrente, á qual esta presa uma âncora angular. Traz à cabeça uma touca em feitio de elmo e, ao pescoço, uma medalha com pedra azul presa numa corrente de duas voltas. Apesar de quase toda a pintura original das vestes achar-se removida, ainda assim, permite e possa fazer idéia de como seria o drapejamento da túnica e do manto esvoaçante, aliás de belo movimento, embora não se perceba exatamente a cor primitiva.

2. Figura de mulher sentada, segurando com a mão direita um ostensório encimado com uma pequenina cruz. Geralmente, as figuras barrocas representativas da Fé compunham uma Cruz, o símbolo da fé cristã. O ostensório, no caso, pode ter alguma correlação com as decisões da Contra-reforma, que confirmaram o sacramento da Comunhão, proporcionando a consequente valorização da Hóstia. A figura traja túnica e traz à cabeça uma espécie de tiara (ou toca) com penachos.

3. Caridade Figura de mulher também de pé, que traz uma criança ao braço esquerdo e, com a mão direita, segura outa criança da pé. Ambas as crianças estão nuas e a mulher veste túnica envolvida por um manto esvoaçante, tendo à cabeça uma espécie de touca, à guisa da coroa. A mulher, não obstante pisar uma concha, mantém-se ereta, sem mostrar qualquer instabilidade. A concha, objeto aliás também mostrado em outros painéis correlaciona inexplicavelmente a representação da Caridade (e de outras Virtudes) com Afrodite (Vênus), mulher sedutora, deusa que a mitologia grega fez nascer da espuma do mar.

1. JustiçaFigura de mulher com uma espada à mão direita. Com a esquerda, faz gesto de segurar uma balança, no caso invisível, pois a pintura foi totalmente arrancada. Usa túnica vermelho-salmão, arrematada com uma gola dourada, sob a qual transparece pequena parte de uma camisa branca, que também se insinua sob as mangas. A figura tem os olhos vendados por uma fita dourada esvoaçante e mostra a cintura cingida por um torçal, que sobe aos ombros sob forma de talabarte. Os cabelos descem aos ombros, mas estão presos por uma tiara arrematada por um pequeno ramalhete de joias sobre a testa. Como a parte inferior do painel acha-se parcialmente removida, não se sabe em que ou como a figura feminina se apoiaria, embora ainda se lhe possam entrever os pés, calçando sandálias de tiras. A restante parte inferior do painel mantém-se preservada e nela estão pintados inúmeros instrumentos bélicos que a justiça – superior à força, parece engasgar: canhões, lanças, tambores, bandeiras e uma arma em forma de clarim, da qual sai uma bola de fogo. De todas as figuras das virtudes a Justiça é a de melhor desenho anatômico e a mais elegante nos gestos.

2. Prudência – Figura feminina sentada, vestida de túnica avermelhada cuja parte inferior da pintura está completamente raspada mal deixando entrever um dos pés, descalço. Tem os cabelos apanhados por faixas esvoaçantes e, com a mão direita, segura um cordeiro, enquanto com a mão esquerda faz um gesto dirigido a um móvel situado no canto inferior direito do painel. Sobre o móvel, haveria uma taça ou espécie de compoteira, mal entrevista, pois a primeira original acha-se retirada. Do interior da taça, parece surgir uma bola de fogo, dentro da qual se forma o desenho de um coração. Na parte superior do braço da figura e no seu pescoço, apoia-se um animal fantástico. Não conseguimos identificá-lo: tem porte entre médio e pequeno, cauda longa e anelada, pés em garras e corpo talvez semelhantes a um cavalo. A cabeça, meio encoberta, tenta penetrar nos cabelos da figura feminina. Seria o animal a estilização de um arminho, de um cachorro, de um lobo ou talvez de uma raposa, com enormes orelhas nascidas quase no pescoço. O painel, como se pode perceber, prenuncia aspectos de pintura surrealista. Na verdade, está sendo identificado como da prudência mais por exclusão do que por decodificação dos seus elementos simbólicos.

3. Fortaleza – Figura de mulher de pé sobre um estrado de piso aveludado, no qual se erguem uma coluna e algo como um móvel cuja forma não se define totalmente, seja por mal invadir a esquerda do painel, ou seja, por estar parte da pintura retirada. De qualquer modo, percebe-se o tratamento barroco dispensado aos elementos compositivos de conjunto. A coluna, aparentemente de madeira, é sextavada e apoia-se numa base, também sextavada com o fuste subdividido em anéis, ficando arrematada no alto por um capitel de mal cuidada aparência coríntia. Apresentada segundo uma linha do horizonte que passa no terço inferior do fuste, a coluna mostra seus elementos formadores numa perspectiva bastante forçada, o que bem denuncia ter sido o painel copiado de algum modelo apresentado em livro ou de quadro executado para ser visto de perto. Se o pintor houvesse levado em conta a visão de quem penetra na capela-mór, quer dizer, a altura em que se situam os painéis, portanto, vistos a distância, jamais teria delineado a coluna segundo a perspectiva marcada segundo o ponto de estação que escolheu. A figura de mulher está vestida com camisa branca meio transparente, complementada com túnica vermelha e manto sépia. A mão esquerda, tenta envolver a coluna, enquanto a mão direita segura uma espada flamejante. Os cabelos são soltos sobre os ombros e as costas.

4. Temperança – Figura feminina sentada, trajando manto vermelho escuro esvoaçante e túnica, cuja cor não se pode precisar (talvez azul) porque se encontra totalmente raspada, tal como aliás em boa parte do fundo do painel. A figura traz à cabeça algo semelhante a um elmo adornado com penachos, enquanto os pés, juntos, estão descalços. Com a mão direita, a figura de mulher segura uma corrente que aprisiona um leão coroado. O leão tem a pata direita levantada, tocando amistosamente o joelho de mulher, a qual, por sua vez, acaricia a cabeça do animal com a mão esquerda. A figura do leão mostra desenho um pouco distanciado do real, particularmente na juba e na cauda, um tanto estilizadas. Sua cara, mal delineada, faz supor a representação de um animal fantástico, que poderia ter tido como modelo alguma peça de procedência chinesa, os chamados leões de Fô, introduzidos no Brasil Colonial pelos viajantes retornados da Ásia, por desvio propositado das rotas marítimas. Embora a pintura do canto superior direito painel esteja avariada, permite perceber-se com dificuldades o desenho de uma grade, certamente a jaula do animal. A corrente com que a mulher prende o leão deve ser entendida com um freio, atributo comumente vivo nas representações da Temperança. Apesar da simplificação dos atributos, o painel sem dúvida tenciona sugerir o refreamento das paixões, cuja força, quer dos sentidos quer da mente, se equivale á de um leão. A figura do animal, bastante destacada no primeiro plano, induziu Antônio Bezerra ao engano de considerá-lo com referente ao episódio bíblico conhecido por “Daniel na Cova dos Leões”

1. Tato – Figura feminina de pé, ligeiramente recurvada, trajando túnica e manto. Pisa um estrado com frente e ilhargas decoradas com losangos, numa solução decorativa de cunho popular. Tem os cabelos soltos e usa sandálias. No seu corpo, apoia-se um cão de pelo liso e negro, com coleira ao pescoço e cara pouco definida, semelhando-se à um lobo, aliás, cauda e cara estilizadas. A figura feminina segura com a mão esquerda uma das patas do cão, enquanto a mão direita o acaricia. No painel, prevalece a tonalidade sépia.

2. Visão – Figura feminina de pé, sobre uma concha, envolvida por um manto escuro apanhado com o braço direito. Em vez de túnica, veste traje cujo modelo se parece bastante com os usuais aos séculos XVII / XVIII, mostrando decote pronunciado e trazendo à cabeça, uma espécie de mantilha esvoaçante. A mão direita segura uma lente ou óculo, aplicado ao olho, enquanto a mão esquerda empunha um espelho de moldura dorada arrematada no alto por curvas e contracurvas.

3. Audição – Figura feminina sentada em uma cadeira de braços colocada, sobre um estrado, cadeira de espaldar alto, em madeira entalhada como formas barrocas. A figura veste um manto vermelho esvoaçante e uma túnica, cuja cor fica por estabelecer, pois a pintura foi retirada de todo e, pior ainda, de modo inquestionavelmente deliberado. A figura traz à cabeça um diadema envolto por peça semelhante a uma mantilha, também vermelha, presa à túnica por um broche. À direita, aparece uma harpa, que é dedilhada pela figura feminina com ambas as mãos. O instrumento musical mal entrevisto levou Antônio Bezerra a supor que o painel apresentava “David tocando a harpa” (Cf. Livro dos Salmos).

4. Paladar – Figura feminina sentada. Usa manto e túnica, deixando ver os pés calçados com sandálias, Os cabelos estão presos com uma tiara sobre a fronte e envolvidos por algo como uma mantilha que se enrosca pelo colo. A mão direita da figura empunha uma faca e uma colher, enquanto a mão esquerda leva a um alimento à boca. Boa parte do painel é ocupada por uma mesa onde se espalham uvas, cajus, abacaxis e melancias. Um trecho do painel, raspado, não permite visualizar outras frutas. Vale contudo assinalar que a apresentação de frutas nos painéis da igreja de Viçosa não constituía novidade. É muito conhecido o caso da decoração do retábulo do altar da capela de Nossa Senhora da Conceição em Voturana, São Paulo, datado de fins do século XVII, onde aparecem cajus e abacaxis, já se configurando a substituição de frutas europeias por produtos brasileiros como referência ecológica ou de afirmação nacionalista.

5. Olfato – Figura feminina elegantemente sentada numa cadeira de braços e pernas estilizados, com desenho nitidamente barroco. Traz à cabeça uma tiara com festão de flores, à guisa de grinalda. Veste túnica à romana, mostrando um manto escuro preso aos braços e estendido sobre as pernas. Calça sandálias. A mão direita apoia-se sobre o braço da cadeira, enquanto a mão esquerda leva ao nariz uma flor, cujo perfume é aspirado pela dama. Sob a cadeira, vê-se um jarro com frutos (aparecem nitidamente um cacho de uvas e outro de cajus). Em frente, sobre um móvel baixo, repousa outro jarro, certamente uma caçoula destinada à queima de plantas aromáticas. No alto, ocupando praticamente a largura do painel, espalham-se flores. A face do móvel voltada para a frente é decorada com uma mascarão. Tanto a cadeira, como o móvel e o vaso (este, delineado sem apuro) apresentam clara filiação aos padrões Luís XIV.

“Estranho pedido ao testamento: “que se dê ao meu corpo sepultura com 14 (catorze) palmos de profundidade.” (MEIRA, 1990, p. 29).

“O padre José Bevilaqua, era estimado por seus paroquianos. O fato de viver em concubinato não lhe afetou o prestígio na comunidade. Era habitual na época, nos sertões do Brasil, os sacerdotes criarem e educarem ostensivamente seus filhos. Um dos mais fortes exemplos é o do romancista “José de Alencar, filho do padre, o rebelde José Martiniano de Alencar, envolvido em tantos e tão assinalados acontecimentos políticos de seu tempo. (…) Até na sua morte esse homem extraordinário foi diferente do comum dos mortais. Pelas dez horas da noite ocorreu a notícia pela cidade: o vigário José Bevilaqua estava passando mal, às portas da morte. Não fosse ele querido e o povo não teria ido para as ruas. Organizou-se procissão, acenderam-se as tochas e a multidão, vagarosamente, percorreu a cidade, orando pelo moribundo. Na noite escura as tochas acesas, e as velas aliadas ao rumor da prece, davam um tom místico àquela manifestação espontânea dos paroquianos. Dirigem-se todos para a rua do Itacaranha, tendo à vanguarda a Irmandade do Santíssimo Sacramento. Em frente a casa as preces prosseguiram até meia noite, quando se afetiva o desenlace, conforme consta da certidão de óbito expedida pelo Cartório de Registro Civil, extraída do livro n.° um (1) de Assento de óbitos, fls. 54, verso, usque 55. Ministrou-lhe a extrema-unção o padre José Ferreira da Ponte. O óbito foi testemunhado pelo capotão Antônio da Silva Fontenele e tenente Virgílio da Silveira Freire. Contava-se o vigário Bevilaqua por ocasião de sua morte, oitenta e sete anos de idade. Seus últimos momentos foram objeto de extenso relatório de autoria de João Benício Bevilaqua, que reproduzimos na íntegra deste capítulo. (MEIRA, 1990, p. 32-33).

“Seu testamento, redigido do próprio punho a 25 de maio de 1886 revela a sua franqueza ao declarar que “viveu de portas a dentro” com Martiniana Maria de Jesus, que lhe deu seis filhos. A primogênita faleceu poucos dias depois do nascimento; os demais Edeltrudes, nascida a 8 de março de 1857; Clóvis, a 4 de outubro de 1859; Clotildes (assim está) a 12 de janeiro de 1876; Euclides, a 15 de outubro de 1867; Angelino, a 31 de janeiro de 1871, todos reconhecidos como seus verdadeiros filhos. E declarou: “assim os tenho criado e educado, e a eles sós constituo meus únicos herdeiros

Biografia de Padre José Bevilaqua, nasceu na cidade de Fortaleza em 05 de setembro de 1818 e faleceu na cidade de Viçosa do Ceará, a 25 de agosto de 1905 e se encontra sepultado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa do Ceará. Aos vinte dias de nascido recebeu o batismo, os Santos Óleos e o nome de JOSÉ, administrado pelo pároco padre Antônio José Moreira, sendo seus padrinhos, Antônio José Teófilo e Isabel Angélica Teófilo, este filho legítimo do Alferes Honorário, do Exército Brasileiro, pertencente ao 23º do Corpo de Voluntários da Pátria. Aos 08 (oito) anos iniciou os estudos nas Letras, mais tarde manifestando vocação religiosa, ao Ministério de Cristo. Diante dessa atitude, seus pais resolveram concretizá-la e o enviou no ano de 1840 ao Seminário Diocesano de Olinda, Pernambuco. Depois de completar o Curso de Teologia e Filosofia a 08 de setembro de 1842, recebeu das mãos do Bispo Dom João da Purificação Marquês Perdigão, a tonsura clerical e as Ordens Menores. A 08 de outubro de 1842 recebeu o seu diaconato. A 19 de novembro de 1843 o presbiterato. A 26 de novembro de 1843 sob concurso é nomeado Pároco Encomendado da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção de Viçosa do Ceará. A 8 de dezembro de 1843 celebrou sua primeira missa na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Prainha, com assistência de grande número de fiéis. A 16 de dezembro de 1843 recebe outorga do padre por procuração como vigário encomendado da Paróquia de Viçosa.